Apresentação

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Até 2008 Os Lusíadas evocavam uma memória recorrente da adolescência: um livro truncado com muitas reticências, uma misturada de sentidos que não acabavam, muitos sublinhados a lápis e, sinceramente, uma total ausência de noção da obra.

Atrevo-me a dizer que mais de 50% da população portuguesa tem, com Os Lusíadas, um historial parecido com o que eu tinha quando em 2008 decidi fazer este projecto: uma obra semi-odiada quando fui aluno do ensino secundário, apreciada, sem ser conhecida quando cresci, uma vaga referência cultural ligada pelo menos à toponímia de alguns centros urbanos…enfim uma referência histórica perdida no baú de tantas referências históricas e informações da memória, que nunca nos damos ao trabalho de refrescar. (Há dias disseram-me que é um dos livros de cabeceira do Eduardo Lourenço, ele refresca-a todas as noites).
Ora, no meu entender, uma das funções de um ator é exatamente refrescar o que, fazendo parte do nosso património coletivo, por quaisquer razões, murchou. Não resisto a transcrever uma citação de António José Saraiva, que só descobri há poucos meses a propósito deste murchar:
Um velho preconceito tornou Os Lusíadas apanágio dos eruditos e das escolas; mas há no Poema uma oralidade viva, um sabor da palavra gostosa que é própria dos bardos, aedos, dos jograis, dos Antónios Aleixos que nos restam. É um livro para ser entoado por recitadores, e não analisado por gramáticos. Por vezes interessa pouco o que ele diz, e vale só a língua sonora que percorre os vários graus da escala, uma palavra que esplende, um som rouco de queixa ou um gesto teatral que se entrevê. Por vezes, também, é um brinco meio irónico com palavras que se repetem ou opõem, como os poetas sempre gostaram de fazer diante dos seus auditores...

 Segui a inspiração de A. J. Saraiva e comecei em Junho de 2008. Verso por verso, estrofe por estrofe, episódio por episódio, canto por canto. Foi-se-me revelando uma grande estória de vida, uma grande estória da condição de ser humano, uma metáfora enorme da nossa condição de seres históricos, em qualquer sítio, em qualquer contexto cultural, em qualquer tempo.

Para nós portugueses Os Lusíadas são a maneira maior de contarmos um tempo, de diversas formas inscrito nos nossos cromossomas, em que todos os conceitos da mundivisão ocidental foram completamente alterados, em que as paredes se romperam e os mares muito maiores que o Mediterrâneo, entraram de enxurrada num mundo que estava cartografado havia mais de mil anos. Do fim do século XV até meados do século XVI o tamanho do Mundo, para um europeu, mais que duplicou. Essa mudança deu-se em menos de 50 anos e está registada na Epopeia de Camões, graças ao artificioso truque que começa no canto 9 na Ilha dos Amores e percorre quase todo o canto 10: a estória sai do tempo real para o tempo do narrador.

Mas Os Lusíadas são também uma súmula do saber que resistiu ao tempo e que continua a resistir: os factos são históricos ou poético/históricos, mas as suas profundas motivações… são de todos os tempos. E a precisão e agudeza e, às vezes crueza, com que Camões as formula, embrulhadas nos processos poéticos… podem deixar-nos o resto da vida a meditar.

 
Ao longo destes anos de trabalho sobre Os Lusíadas, o meu objectivo era muito claro: contar esta estória, a de um punhado de homens que se lançam no espaço desconhecido por razões absolutamente contraditórias. Podemos imaginar: por ambição, por desespero, por aventura, por convicção, por necessidade, por inconsciência… Era actualizar estas motivações de viver que são ainda, apesar de tudo, as nossas motivações. Era falar esta estória que eu pressentia n’Os Lusíadas.

E de repente sou surpreendido: tudo isto está lá como está nas grandes obras de música, nas grandes sinfonias: subrepticiamente, insinuado nos ritmos, nos jogos de palavras, nos fôlegos de pensamento, no humor, no contraste dos andamentos…

Ler Os Lusíadas exige uma grande competência técnica: a sintaxe, as referências culturais, as metáforas, o contexto histórico… Ler uma partitura de música exige muita competência e não é qualquer pessoa que o pode fazer. Mas ouvir uma sinfonia só exige uma grande disponibilidade e gosto pela música. O conhecimento técnico da partitura ajuda a apreciar mas não é fundamental para se ser tocado. Pode acontecer o mesmo com Os Lusíadas?

Depois de mais de quatro anos de trabalho não tenho dúvida em afirmar que isso não só é possível como é a única maneira de ousar fazer d’Os Lusíadas uma obra actual, viva, comovente, para todas as pessoas disponíveis para se deixarem surpreender mas que, por diversas razões, são incapazes de ir sozinhas à procura:

o grosso das referências da obra fazem parte da nossa memória colectiva; o embalo dos versos é muitas vezes mais importante do que as referências que veiculam; a ingenuidade universal de tantos episódios e factos referidos levam-nos a uma viagem profundamente autobiográfica, como as mais ingénuas estórias infantis. Mais: as estranhezas da obra, quando despojados da vergonha de ignorarmos o que pensamos que devíamos conhecer, ajudam a concretizar o efeito de desdramatização, da “fruição segura” de que fala A. Damâsio.

Não há adolescente que deixe de vibrar com o Senhor dos Anéis ou o Harry Potter  porque não entende tim-tim por tim-tim a mitologia com que essas obras se tecem. Com isto não quero dizer que Os Lusíadas é uma obra para adolescentes. Bem pelo contrário. Não querendo intrometer-me no papel que ela ocupa na Escola, quase só destinada ao estudo da Língua Portuguesa, penso que pode ser muito mais saboreada por quem tem da vida alguma experiência e para quem a História já não é um amontoado de referências ligadas por teorias mais ou menos rígidas.

Sempre foi minha intenção interferir mais na memória colectiva que os potenciais ouvintes têm da obra do que contribuir para o seu estudo, não importa qual seja o contexto. O meu trabalho pode contribuir para a abordagem que os professores fazem da obra na escola, mas a minha perspetiva não é essa. Estou disponível para colaborar. Mais: penso que os atores deviam ter um papel importante na apropriação das obras da Literatura no sistema de ensino se tivessem essa competência desenvolvida e se estivesse estabelecido entre o sistema de ensino e as estruturas artísticas um diálogo e colaboração permanentes. Mas essa é outra questão que só levanto para afastar liminarmente o comentário que ouço frequentemente: “que fantástico para as escolas!” Não! Que fantástico podermos viajar por dentro duma obra que faz parte do nosso imaginário.

É desta ideia que decorre o plano que gizei para a presentação do resultado do meu trabalho, durante 4 anos solitário: deslocar-me para um local (uma cidade com um teatro e com uma estrutura artística mínima. Aí, em cumplicidade com os agentes locais, durante um mês e meio/dois meses, fazer antologias d’Os Lusíadas em associações culturais, escolas, grupos informais de reunião e convívio; simultaneamente trabalhar com elementos da população local o canto10 (entre 50/100 pessoas); no último sábado da minha estadia fazer o integral da obra, no Teatro, com cenário, música e luz, com início às 10 da manhã. De hora a hora um canto. Pelas 23 horas os elementos da população com quem trabalhei, juntamente comigo, dizemos o 10.

De alguma maneira este processo devolve a obra às pessoas, torna-as participantes do acontecimento e fazem a parte mais importante da divulgação.